Lispecções

Lispecção: s.f. corresponde ao ato de definir sentimentos com precisão anímica; forma apurada de comunicação embebida de poesia. Alguns exemplos:

Animosidade

O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os plenos pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida.


Modelagem

Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem eu sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que sinto mas o que eu digo.


Elucubração

- O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana. (...) - Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? – repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
- Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer, que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
- Ser feliz é para se conseguir o quê?
A professora enrubesceu – nunca se sabia dizer por que ela avermelhava. Notou toda a turma, mandou-a dispersar para o recreio.


Meticulosidade

- Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido, é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma capacidade perigosa – daí um temor maior ainda. Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar sobre todos.
- Sim...
- Eu disse: quem se recusa... Porque há os... os planos, os feitos de terra que sem adubo nunca florescerá.


Anelo

- Gosto. Mas eu nunca sei o que fazer das pessoas ou das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde pequena. (...) eu não trago paz a ninguém (...)


*Todos os textos: Perto do coração Selvagem. Clarice Lispector.